Educação e Literacia

por Helena Costa Araújo

Ao ler estes textos de Maria Lourdes Pintasilgo, torna-se evidente a sua concepção de educação como mais abrangente do que as ideias clássicas, não se fixando apenas no escolar e sustentando uma noção de acção cultural, fortemente ligada ao exercício de uma cidadania activa que tem os direitos civis, políticos, sociais e culturais como referenciais centrais, e uma noção de sujeito capaz de confrontar o futuro, interrogando-o e procurando trazer-lhe forma, através da sua acção.

De facto, a sua concepção não se reduz a uma acentuação apenas na via do escolar. Em 1970, o seu envolvimento nos programas de alfabetização do Graal está relacionado com a elaboração de um pensamento sobre o método de Paulo Freire a concretizar-se então na zona de Coimbra (no ano precedente em Portalegre) . O conceito de “conscientização”, defendido por aquele pedagogo, é sublinhado por Maria de Lourdes Pintasilgo como forma de situar esse pensamento, acentuando o “carácter dinâmico e permanente da aprendizagem que supõe”, o “cultivar a atitude de espírito que é de escuta”. Desta forma, num período mais sistematicamente definido por paradigmas pedagógicos de transmissão, centralizados por um Estado autoritário, posiciona-se em defesa de concepções de educação em que a pessoa educanda é considerada um sujeito que se envolve no processo de aprendizagem, mobilizando as suas experiências, o que implica, da parte de quem coordena o processo, atitudes de escuta e diálogo. E, num período da vida portuguesa, em que a ditadura restringe apertadamente as vidas humanas, a sua reflexão em torno desta pedagogia traz as marcas de uma contribuição para a mudança clara do regime.

São intervenções de Maria de Lourdes Pintasilgo que anunciam o seu posicionamento em defesa dos direitos humanos e se relacionam estreitamente com a paz, agora como embaixadora na UNESCO, em 1978 . Reflecte e denuncia a forma como se fala da guerra, como algo que há-de vir, quando se vive num mundo que a transporta constantemente e que necessita de instituições, como a UNESCO, para evidenciar a «massiva violação de direitos humanos» . Uma educação escolar que encoraje uma reflexão sobre os direitos humanos é certamente importante mas, sublinha Pintasilgo, é necessário muito mais. É necessária uma ciência e uma tecnologia que não declarem a sua pretensa neutralidade, mas que contribuam por variados meios para o desenvolvimento dos direitos, já que ambas «têm muito a ver com a educação no seu sentido mais alargado» .

Uma perspectiva educacional que frequentemente é a sua e é definida como uma abordagem socio-cultural e socio-política . Em que se assinala um mundo em transição, com o processo de globalização, um mundo humano que se torna mais consciente da «falácia do crescimento contínuo» , com a consequente substituição «dos velhos termos ideológicos de referência» por formas que exigem que nos aventuremos pelo desconhecido. Acentua a necessidade de uma clarificação filosófica que permita que não seja apenas o acentuar do ter às custas do ser, em que um novo contrato social seja configurado. Onde cada pessoa se confronte perante o pensamento e a produção contemporâneas, e assuma a responsabilidade pela natureza à sua volta, repensando uma exploração que dela se tem feito sem limites: «O futuro está com o homem ou a mulher que pode viver como um indivíduo, consciente da solidariedade do ser humano. Tem de saber viver com a tensão entre individualidade e solidariedade como fonte da criatividade ética» .

São estes temas da criatividade ética e do novo compromisso como sujeito que reforça noutros textos mais recentes, de 1998 e 2000 , e que são centrais para uma concepção de educação: a cidade e a cidadania vivem-se a partir da assunção de um sujeito actuante, consciente, de um «agente de cultura», glosando Paulo Freire, e citando Hanna Arendt, como sujeito «na acção em que se envolve na construção da cidade organizada» .

Simultaneamente, sublinha que a sua perspectiva não foca somente a acção consciente do individuo como sujeito de educação e cultura, mas implica um novo contrato social em que Estado e a comunidade têm de assumir formas mais comprometidas com a concretização dos direitos civis, políticos, sociais e culturais: «a cidadania exige do Estado o pleno cumprimento da sua tríplice responsabilidade – defender/proteger/promover todos os direitos» .

Quando se incide mais especificamente sobre as suas concepções de educação formal, estas situam-se no contexto de regime democrático em que Portugal já então vive. O ensino superior é pensado, em particular, na forma como se deve posicionar num tempo de crise paradigmática, de forma não estática, não corporativa, num período que anuncia o «fim da ideologia do industrialismo» , assinalando a centralidade da capacidade de se adaptar às mudanças radicais que estão no horizonte.

Maria de Lourdes Pintasilgo possui uma visão muito crítica sobre o ensino superior de então, que produz enquanto primeira-ministra do país: «a perspectivação do ensino superior carece de fundamentação existencial: é idealista, angélica, atemporal, apolítica, acientífica. Por isso, não serve os valores da realização pessoal nem consegue contribuir de forma decisiva para a produção da sociedade». Acentua a importância de novas formas que tenham em conta a abertura a vários grupos sociais, para além das elites, numa clara opção pelo ensino superior “de massas”. Evidencia a necessidade do trabalho intersectorial, da interdisciplinaridade, da integração das novas tecnologias de informação de forma sistemática, da abertura à valorização de experiências de trabalho completando as aprendizagens formais, da reorganização do ensino superior em grandes áreas científicas - para que possa responder «à aceleração da história». Assinala que se trata de um período em que «a sociedade pós-industrializada bate à nossa porta e ainda nós estamos a equacionar as necessidades do país em termos de sociedade em vias de industrialização». Essa mudança estrutural do ensino superior terá de basear-se numa noção de educação como «viagem iniciática», providenciadora de «chaves de interpretação», de capacidades críticas para desdobrar qualquer problema e numa relação docentes-estudantes «humana, interpessoal directa».

O tema da relação e missão dos docentes é também trabalhado num outro texto (0219.021), relativamente ao ensino básico e secundário, assinalando como essa relação, constituída em diferentes poderes e expressão de diferentes registos, é central numa escola do estado democrático, nas suas componentes de responsabilização, participação, formação .

Para completar esta visão sobre concepções de educação, não pode deixar de se referir a importância que, desde o final dos anos 1960, Pintasilgo põe na acção das mulheres e, em particular, das universitárias, num papel de mediação, particularmente com grupos sociais menos favorecidos. Afirma que «a cultura na mulher implica sempre uma dimensão do social» , pela projecção que em várias culturas se faz do trabalho educativo a elas entregue, nomeadamente com crianças.

Nos anos 1970 e posteriormente, esta expectativa na intervenção das mulheres no espaço público da cidadania é formulado na base de uma conscientização: no fortalecimento das sociedades democráticas, a participação dos vários grupos é fundamental e as mulheres são um desses grupos cujas vivências são centrais para essa construção. Constituem [as mulheres] «o maior e o mais universal, mas também o que está mais longe ainda da descoberta da sua identidade» , afirma na Revista Mulheres em 1983 , percepcionando a acção desta revista como contribuição para um processo educacional de uma consciência que colectivamente se vai assumindo.

Pode pois, nesta leitura das concepções de educação e literacia em Maria de Lourdes Pintasilgo, acentuar-se que se está perante uma visão alargada de educação, frequentemente traduzida por conscientização, por essa capacidade de a pessoa humana, nos seus contextos específicos, assumir uma noção de conhecimento, reflexão e acção sobre as condições de desigualdade, de marginalização, de desempoderamento, de violência em que se encontra e/ou em que se encontram outros seres humanos, ao mesmo tempo que se desenvolvem capacidades por saberes e saberes-fazeres mais alargados e criativos.

Vale a pena terminar, citando, nas suas palavras Bernardo Soares (Fernando Pessoa) de que «também há infinito na Rua dos Douradores» e que é necessário «na janela de um quarto andar, apesar dos caixotes e das carroças, poder ver que há céu e que no céu há estrelas» – são sentidos centrais para a educação em seu entender.