Política e Espiritualidade

por Teresa Toldy e Cláudia Ramos

Parece ser lícito considerar que Maria de Lourdes Pintasilgo tinha uma compreensão da política na qual a mística e a acção se entrecruzavam, numa esperança outra , geradora de uma leitura crítica da realidade e de propostas criativas de intervenção.

Não se pense que a relação estabelecida entre a política e a espiritualidade se fazia, na sua mente e no seu agir, através de uma sacralização das instituições civis, de uma interpretação do papel dos cristãos na sociedade como “guarda avançada” de um pietismo ritualista ou de um projecto que implicasse a rejeição explícita ou sub-reptícia da autonomia das realidades terrenas, para recordar as palavras do Concílio Vaticano II (Gaudium et spes). Até porque Maria de Lourdes Pintasilgo não parecia considerar o cristianismo uma religião do ser humano à procura do sagrado inusitado (isto é, que consola em tempo de incerteza, através de uma simplificação da análise da realidade), mas antes uma religião do ser humano “espiritual”, que lê a realidade secular à luz de uma fé em Deus presente à história, uma história na qual o cristão deve agir etsi deus non daretur (para utilizar as palavras de Bonhoeffer), como se Deus… não existisse.

O ponto de vista de Maria de Lourdes Pintasilgo sobre a realidade circundante traz a marca da cristã, da mulher, da feminista e do perfil engagé que permeou a Europa, desde os anos 60 do século XX. Maria de Lourdes Pintasilgo não vê com os olhos do teórico ou do observador distante, vê, com agudeza, a partir da realidade circundante, enquanto estudante, enquanto engenheira, enquanto mulher, cívica e politicamente envolvida. Todavia, não evidencia um posicionamento político convencional: emerge na acção política por razão de uma postura cívica que, por sua vez, decorre de razões profundas da sua consciência cristã. O maior contraste da sua postura com a política contemporânea média é a ausência de laicismo, expressa nomeadamente na crítica à sacralização do secularismo.

Vê com agudeza: vê, já nos anos 70, o peso da política global sobre o quadro nacional. Vê o efeito discriminatório dos factores estruturais – demografia, mercado, distribuição da riqueza, poder político e correlativa força militar, ecologia – e afirma: «(...) a discriminação tem um efeito secundário de alta perversidade: torna invisível» Vê a inoperância dos mecanismos políticos institucionalizados face à incerteza e complexidade do real, na promoção do que considera valores de solidariedade universal. Vê o abrupto da historicidade humana, nega-lhe a linearidade e preconiza a transformação, com base na sua consciência cristã: Deus diz “Eis que faço novas todas as coisas” .

É, pois, numa espiritualidade que confia que Deus diz uma ordem nova das coisas , que Maria de Lourdes Pintasilgo, ancorada no profetismo bíblico e na figura libertadora de Jesus Cristo, avalia o momento de crise pelo qual a história passa, como o momento e o lugar para intervir, na abertura, na brecha, talvez no paroxismo e no seio do próprio absurdo . A leitura crítica que faz deste momento (no sentido bíblico de kairós – o tempo oportuno para a acção inspirada pela fé) baseia-se, pois, na valorização da própria realidade, no seu gosto por aquilo que existe , numa atenção aos sinais de vida (e de morte), presentes numa complexidade (num mundo sobrepovoado de impressões que apela à necessidade de inventar novos instrumentos de análise e de intervenção.

Por isso, apela a uma nova ética, realista diante do imprevisível que caracteriza, na sua opinião, as sociedades actuais, e respeitadora da complexidade de um mundo com problemas tornados globais. Esta ética, marcada pela confiança num Cristo encarnado, que vem ao encontro da humanidade, oferecendo um novo começo, encerra a tensão entre o local e o global, mantendo ambos os pólos.

É uma ética do cuidar do presente e do cuidar do futuro, à procura de linhas de transformação do “agora”, para preparar o mundo “que há-de ser”. Cabe aqui acrescentar que esta visão de Maria de Lourdes Pintasilgo possui a marca indelével da sua reflexão sobre o papel das mulheres nas sociedades locais e no mundo global, já que, na sua perspectiva, as vivências e concepções com as quais estas enriquecem o mundo de todos estão marcadas pelo princípio da diversidade do real , pela capacidade de desdobramento da existência numa rede de experiências significativas.

A acção política é consequente e concomitante com a acção do cristão. A participação política democrática é proposta como re-apropriação do espaço político pelos cidadãos e garante de liberdade. Ao individualismo e liberalismo, cuja vigência rejeita, contrapõe a fraternidade universal. À universalização estatutária dos direitos – que considera insuficiente por geral e abstracta – contrapõe o agir, guiado pelos princípios da responsabilidade e da relação , com cada um dos outros concretos do caminho.